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Sem crônicas — Distribuição anal

Foto do escritor: Izabella CristoIzabella Cristo

Uma pilha de livros sobre a mesa e uma autora recém nascida encucada.

Desta vez não com palavras ou com a edição. Nem com o figurino da capa.

Eu, aqui, encucada com outra coisa: para quem devo presentear o meu primeiro livro.

Sentada, olhando para eles, encarando-os como se fossem Gremlins. Se os abrir, virarão monstros e irão em atacar os leitores à noite.

Parece tolo. Pode soar petulante. Tentarei explicar a angústia que me dá em pensar na pessoa que abrirá este livro ao recebê-lo.

Alguns anos de textos incubados em gavetas e diários. Um pulso de coragem, com mais alguns meses de edição e refinamento do texto. Produção, mais edição e revisão, seguido de diagramação, testes para publicação, com reforços, sem falar de toda sangria psicológica e financeira.

Mandei imprimir uma tiragem. Após o que parecia ser uma longa espera, eis que tenho um livro de papel, o meu livro, em mãos, por inteiro.

Já o quero jogar fora.

Veio um segundo livro. Já penso no terceiro, no quarto. Na vida.

A minha breve alegria de ter concluído um ciclo da escrita foi-se embora.

A cuca está aqui, retornando, reverberando para quais pessoas devo entregar o primeiro livro. Entregar assim, de mão beijada, um pedaço mal feito da minha história ultrapassada de escritora.

Sim, porque os livros são nossos filhos. É um pedaço da gente que o leitor recebe de fino agrado, porque cavalo dado não se olha os dentes, nem os erros ortográficos. Estes leitores serão presenteados com a minha prole precoce.

Corrói a ideia de que um descendente esteja torto. Ou que seja um natimorto. Mais fácil aceitar a navalha de quem pagou, quer e merece, receber um bom produto. Como tudo que envolve arte, pode-se ter de graça, pode-se pagar um absurdo. Não tanto pelos bons livros, que mereciam ser lidos por todo o mundo e distribuídos junto com as camisinhas no Carnaval.

Digressões à parte, o livro foi bem revisado. Tive que corrigir algumas dezenas de vezes um Rod, que o programa insistia em transformar em Rob, concebendo a ideia de um português chulo que não aceita inglês e nem neologismos.

Pensando que iria deitar no mar de tranquilidade após a edição, tomei um baita susto, alertado por uma amiga leitora, quando precisei acertar um “afinal”, que na ausência de algumas letras, transformou-se em um “anal” aleatório, o que condenaria eternamente minha carreira de escritora, já em constante divergência com a de Proctologista. Mais uma vez a força excruciante da medicina se comprovava no corretor automático, invadindo os meus textos e incutindo subliminarmente que eu deveria mesmo era cuidar de ânus. Olha a falta que um “fi” me faz!

Após o episódio do “anal”, ainda persisti em algumas releituras, mas logo larguei o livro de lado, pois já me deu vontade de reescrever todo um capítulo.

Desde então, nunca mais abri o primeiro livro. A não ser as primeiras páginas para tentar escrever com certo carinho alguma dedicatória manca, porque nem isso ainda eu sei fazer direito.

Depois de tudo pronto, um livro, o meu livro, chega como eu: cheio de defeitos.

Quem irá recebê-lo de bom grado? Os amigos? O marido?

Alguém aí há de se divertir comigo?

Eu aqui encucada com a parte de mim que vão receber. Um pedaço meio morto, meio louco, mas ainda assim, algo do que fui, parte do que sou. Um petisco do meu âmago.

Preparo-me, então, para a próxima fase: a distribuição.

Alguns chegarão até aqui. Lerão o murmúrio. Acharão um absurdo de título. Mesmo assim, a curiosidade os acometerá de tal forma que vou convencê-los, mesmo contra qualquer força da razão, à chegar ao final destas linhas.

Outros nem aqui passarão. Vão guardar o livro na gaveta ou na prateleira. Se eu tiver certa honra, terei algum lugar à cabeceira em noites de desamparo.

Alguns curiosos, irão abri-lo para saber o que esta louca anda fazendo. Vão lendo. Podem duvidar. Podem questionar que agora qualquer um pode falar e escrever ao relento. Ninguém é amigo ou conhecido de escritor de talento.

Verdade que se eu fosse rica distribuiria meu íntimo para o planeta, sem preocupação? Acho que não.

Tem gente que não sabe o que fazer com coração. Nem o próprio, muito menos os dos outros. Amar dá medo. Ser bom, ser verdadeiro, dá um puta trabalho e pode ser um pesadelo. E eu ainda não mereço ser distribuída no Carnaval.

Se o mundo descobrir quem você é, afinal? Que tem defeitos?

Não dá. Preciso zelar pela minha imagem. Preciso ser santa. Séria. Comedida. Não somos todos perfeitos nesta vida?

Eis o pulo do gato.

Olhei para os Gremlins. Não é que eles parecem tão fofinhos fechadinhos?

Vou distribuir o meu “anal”, aFInal. Sem medo e sem vergonha. Sem receio de ser comida ou devorada pelas páginas viradas. Que cheguem suas dedadas. Segue a vida.

Se a carreira de escritora não seguir de vento em polpa, pelo menos a de Proctologista estará garantida.

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