Uma pilha de livros sobre a mesa e uma autora recém nascida encucada.
Desta vez não com palavras ou com a edição. Nem com o figurino da capa.
Eu, aqui, encucada com outra coisa: para quem devo presentear o meu primeiro livro.
Sentada, olhando para eles, encarando-os como se fossem Gremlins. Se os abrir, virarão monstros e irão em atacar os leitores à noite.
Parece tolo. Pode soar petulante. Tentarei explicar a angústia que me dá em pensar na pessoa que abrirá este livro ao recebê-lo.
Alguns anos de textos incubados em gavetas e diários. Um pulso de coragem, com mais alguns meses de edição e refinamento do texto. Produção, mais edição e revisão, seguido de diagramação, testes para publicação, com reforços, sem falar de toda sangria psicológica e financeira.
Mandei imprimir uma tiragem. Após o que parecia ser uma longa espera, eis que tenho um livro de papel, o meu livro, em mãos, por inteiro.
Já o quero jogar fora.
Veio um segundo livro. Já penso no terceiro, no quarto. Na vida.
A minha breve alegria de ter concluído um ciclo da escrita foi-se embora.
A cuca está aqui, retornando, reverberando para quais pessoas devo entregar o primeiro livro. Entregar assim, de mão beijada, um pedaço mal feito da minha história ultrapassada de escritora.
Sim, porque os livros são nossos filhos. É um pedaço da gente que o leitor recebe de fino agrado, porque cavalo dado não se olha os dentes, nem os erros ortográficos. Estes leitores serão presenteados com a minha prole precoce.
Corrói a ideia de que um descendente esteja torto. Ou que seja um natimorto. Mais fácil aceitar a navalha de quem pagou, quer e merece, receber um bom produto. Como tudo que envolve arte, pode-se ter de graça, pode-se pagar um absurdo. Não tanto pelos bons livros, que mereciam ser lidos por todo o mundo e distribuídos junto com as camisinhas no Carnaval.
Digressões à parte, o livro foi bem revisado. Tive que corrigir algumas dezenas de vezes um Rod, que o programa insistia em transformar em Rob, concebendo a ideia de um português chulo que não aceita inglês e nem neologismos.
Pensando que iria deitar no mar de tranquilidade após a edição, tomei um baita susto, alertado por uma amiga leitora, quando precisei acertar um “afinal”, que na ausência de algumas letras, transformou-se em um “anal” aleatório, o que condenaria eternamente minha carreira de escritora, já em constante divergência com a de Proctologista. Mais uma vez a força excruciante da medicina se comprovava no corretor automático, invadindo os meus textos e incutindo subliminarmente que eu deveria mesmo era cuidar de ânus. Olha a falta que um “fi” me faz!
Após o episódio do “anal”, ainda persisti em algumas releituras, mas logo larguei o livro de lado, pois já me deu vontade de reescrever todo um capítulo.
Desde então, nunca mais abri o primeiro livro. A não ser as primeiras páginas para tentar escrever com certo carinho alguma dedicatória manca, porque nem isso ainda eu sei fazer direito.
Depois de tudo pronto, um livro, o meu livro, chega como eu: cheio de defeitos.
Quem irá recebê-lo de bom grado? Os amigos? O marido?
Alguém aí há de se divertir comigo?
Eu aqui encucada com a parte de mim que vão receber. Um pedaço meio morto, meio louco, mas ainda assim, algo do que fui, parte do que sou. Um petisco do meu âmago.
Preparo-me, então, para a próxima fase: a distribuição.
Alguns chegarão até aqui. Lerão o murmúrio. Acharão um absurdo de título. Mesmo assim, a curiosidade os acometerá de tal forma que vou convencê-los, mesmo contra qualquer força da razão, à chegar ao final destas linhas.
Outros nem aqui passarão. Vão guardar o livro na gaveta ou na prateleira. Se eu tiver certa honra, terei algum lugar à cabeceira em noites de desamparo.
Alguns curiosos, irão abri-lo para saber o que esta louca anda fazendo. Vão lendo. Podem duvidar. Podem questionar que agora qualquer um pode falar e escrever ao relento. Ninguém é amigo ou conhecido de escritor de talento.
Verdade que se eu fosse rica distribuiria meu íntimo para o planeta, sem preocupação? Acho que não.
Tem gente que não sabe o que fazer com coração. Nem o próprio, muito menos os dos outros. Amar dá medo. Ser bom, ser verdadeiro, dá um puta trabalho e pode ser um pesadelo. E eu ainda não mereço ser distribuída no Carnaval.
Se o mundo descobrir quem você é, afinal? Que tem defeitos?
Não dá. Preciso zelar pela minha imagem. Preciso ser santa. Séria. Comedida. Não somos todos perfeitos nesta vida?
Eis o pulo do gato.
Olhei para os Gremlins. Não é que eles parecem tão fofinhos fechadinhos?
Vou distribuir o meu “anal”, aFInal. Sem medo e sem vergonha. Sem receio de ser comida ou devorada pelas páginas viradas. Que cheguem suas dedadas. Segue a vida.
Se a carreira de escritora não seguir de vento em polpa, pelo menos a de Proctologista estará garantida.
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